terça-feira, 20 de dezembro de 2011




RESOLUÇÃO DA
CONVENÇÃO DE LISBOA

 AUDITORIA CIDADÃ À DÍVIDA PÚBLICA

CONHECER PARA AGIR E MUDAR

Salários e pensões confiscadas, trabalho adicional não pago, mais impostos sobre o trabalho e bens básicos de consumo, mais taxas sobre a utilização de serviços públicos, menos protecção no desemprego, cedência a privados de bens comuns pagos por todos — tudo justificado pela necessidade de servir a dívida pública sem falha. Dizem-nos que cortar despesa pública, aumentar impostos e taxas, degradar o nível de provisão e de qualidade dos serviços públicos para servir a dívida sem falha, é “a única alternativa”. Mas como pode ser alternativa o que não chega sequer a ser uma solução? A austeridade, o nome dado a todos os cortes e confiscos, não resolve nenhum problema, nem sequer os da dívida e do défice público. Pelo contrário: conduz ao declínio económico, à regressão social, e depois disso à bancarrota. É chegado por isso o momento de conhecer o que afinal é esta dívida, de exigir e conferir a factura detalhada. De onde vem a dívida e porque existe? A quem deve o Estado? Que parte da dívida é ilegítima e ilegal? Que alternativas existem para resolver o problema do endividamento do Estado? Tudo isso incumbe a uma auditoria à dívida pública. Uma auditoria que se quer cidadã para ser independente, participada, democrática e transparente.

1. DA CRISE FINANCEIRA Á CRISE DA DÍVIDA

1.1 O mundo vive, desde 2007, os efeitos de uma crise internacional que começou por ser financeira, e rapidamente se transformou numa crise também económica e social. A actual crise, apenas comparável à Grande Depressão, teve origem na especulação financeira e imobiliária nos EUA. Foi o resultado de um processo de desregulamentação, liberalização e privatização dos mercados financeiros, que deu origem a uma economia insustentável, assente no endividamento. Esta trajectória anunciava-se, desde há muito, desastrosa.

1.2 Numa primeira fase da crise, os Estados salvaram o sistema financeiro global através de injecções massivas de liquidez, da socialização dos prejuízos da banca e da adopção de programas de estímulo económico. O preço, porém, foi uma degradação das contas públicas, provocada, quer pelos custos dos resgates bancários, quer pela queda das receitas fiscais, quer pelo aumento da despesa, resultantes da recessão. Os maiores défices orçamentais, embora estabilizadores da economia, contribuíram para um maior endividamento público em todos os países.

1.3 Na segunda fase, a crise estendeu-se à Europa, em particular à Grécia, à Irlanda e a Portugal, primeiro, e à Espanha e Itália, depois. Vítimas de uma arquitectura monetária europeia deficiente, estas economias viveram na última década uma degradação da sua posição na economia europeia e mundial, que resultou em estagnação económica ou, quando muito, num crescimento assente em bases frágeis, só possível através do recurso ao endividamento, público e privado. A vulnerabilidade económica estrutural destes países, somada à crise financeira internacional, foi explorada pelos mercados financeiros através de uma euforia especulativa em torno da dívida pública de que se não conhecem precedentes.

1.4 A resposta a este ataque foi, incompreensivelmente, a imposição de programas de austeridade brutais a estes países, agravados pelas condições exigidas nos vários resgates financeiros da troika BCE/FMI/FEEF. A austeridade condena os países intervencionados ao aumento do desemprego, à destruição progressiva do Estado social e à recessão sem fim; conjugada com a que está a ser praticada em todos os outros da UE, produz uma depressão à escala europeia e mundial que as previsões oficiais já não ignoram.

2. ENDIVIDAMENTO E CRISE DA DÍVIDA EM PORTUGAL

2.1 Entre 2000 e 2005, verificou-se um aumento do peso da dívida pública no produto interno bruto (PIB). Até 2005, este rácio esteve sempre abaixo de 60%, o máximo permitido pelos critérios de Maastricht, estando o seu crescimento relativamente contido até 2008. O endividamento público disparou apenas na sequência da crise financeira aquando do resgate do sistema financeiro e da recessão. No entanto, o mesmo não se passou com a dívida do sector privado, cujo crescimento e internacionalização têm sido fomentados pela vaga de financeirização observada ao longo da última década.

2.2 À semelhança da Grécia, Itália e Espanha, o problema de base da situação que se vive em Portugal resulta das condições de adesão ao euro e da sua arquitectura. Não só a taxa de câmbio de entrada no euro se encontrava excessivamente apreciada, dado o receio de pressões inflacionistas, como também a própria arquitectura subjacente ao euro é bastante deficiente e protectora dos interesses dos sectores exportadores dos países do centro e do sistema financeiro privado, em detrimento dos interesses da generalidade das cidadãs e cidadãos europeus.

2.3 A resposta à crise da dívida tem consistido em sucessivos programas de austeridade. Torna-se cada vez mais claro que este tipo de resposta condena a sociedade portuguesa ao aumento do desemprego, ao desmantelamento do sector público produtivo e à destruição progressiva do Estado social, sem contudo reconduzir a dívida pública a níveis económica e socialmente sustentáveis, nem criar perspectivas de recuperação económica.

2.4 No início da intervenção da troika, a dívida pública portuguesa tinha ultrapassado os 97% do PIB. Em 2013, quando é suposto esta intervenção terminar, deverá situar-se acima de 106% do PIB desse ano. Entretanto, o nível do PIB terá regredido para valores de há quase uma década, e o desemprego situar-se-á acima dos 13%. Estas são previsões do próprio governo português. A OCDE estima uma taxa de desemprego de 14,2%. No final da intervenção da troika, Portugal terá uma dívida pública maior e estará mais pobre. Reconhecer-se-á então que a dívida pública é insustentável e que os sacrifícios foram inúteis, tendo servido apenas para agravar os problemas.

2.5 A austeridade não oferece soluções. É necessário procurar respostas por outras vias. Para isso, a questão da dívida deve ser encarada de um ponto de vista realista e compatível com a salvaguarda de valores e direitos humanos fundamentais universalmente reconhecidos, diverso do adoptado pelo governo português. Torna-se urgente a reestruturação da dívida pública liderada pelo Estado soberano, estendendo a maturidade dos empréstimos, reduzindo as suas taxas de juro, ou mesmo reduzindo o capital em dívida. Requer-se a realização de uma auditoria cidadã à dívida pública.

3. A NECESSIDADE DE UMA AUDITORIA CIDADÃ À DÍVIDA PÚBLICA PORTUGUESA

3.1 As cidadãs e cidadãos continuam a desconhecer a origem, a composição e os valores rigorosos da dívida pública portuguesa. A propaganda de matriz neoliberal promove a ideia de que a dívida pública se ficou a dever sobretudo aos gastos com as funções sociais do Estado. No entanto, há contratos públicos pouco escrutinados, de que resulta, a prazo, maior endividamento público. É o caso de diversas Parcerias Público-Privadas (PPP), que, como indiciam relatórios do próprio Tribunal de Contas, se têm vindo a revelar gravosas para o Estado português.

3.2 Na ausência de qualquer vontade por parte das autoridades de encarar o problema da dívida na óptica dos interesses da população portuguesa no seu conjunto, tomamos a iniciativa de iniciar um processo de auditoria cidadã à dívida pública. A auditoria deve avaliar a complexidade do problema da dívida, calcular a sua dimensão, determinar as partes da dívida que são ilegais, ilegítimas, ou insustentáveis, e exigir a sua reestruturação e redução para níveis social e economicamente sustentáveis. Esta auditoria pode levar à conclusão de que há parcelas da dívida que devem ser repudiadas.

3.3 A realização de uma auditoria cidadã que permita determinar a dimensão e complexidade do problema da dívida pública é um direito legítimo das portuguesas e dos portugueses. Está mais do que comprovado que a via da austeridade, subserviente aos mercados financeiros, não oferece soluções para nenhum problema, incluindo o do endividamento.

3.4 A austeridade, ou a estratégia de “desvalorização interna”, como é conhecida entre economistas, promete resolver de um só golpe os problemas do défice das contas públicas e das transacções com o exterior. Através de redução da provisão de serviços públicos e de aumentos de impostos e de taxas, pretende reduzir o défice público. Não ignora o efeito recessivo destas medidas, antes o considera instrumental para a redução do défice externo, já que considera que o desemprego induzido pela recessão, combinado com a retracção da protecção social aos desempregados, são os mecanismos que podem forçar a desejada redução dos salários. A redução dos salários é desejada porque é considerada como um meio para a recuperação da “competitividade” e o reequilíbrio das transacções correntes.

3.5 Esta estratégia, desenhada a régua e esquadro pelo FMI, é incapaz de produzir os resultados que promete. Quanto ao défice das contas públicas e das transacções com o exterior, ignora o risco de uma permanente derrapagem decorrente da retracção da receita fiscal criada pela recessão. Quanto ao défice externo, não tem em conta o efeito social de um desemprego massivo, nem a anulação da desvalorização pela adopção de uma estratégia semelhante na maioria dos países da UE. A estratégia da austeridade é socialmente brutal e economicamente fútil.

3.6 No entanto, além das razões económicas, há razões jurídicas e morais fundamentais que justificam esta auditoria. São legítimas as taxas de juro usurárias que decorrem de enfermidades sistémicas e de “contágios” no interior de uma zona euro mal concebida? São legítimas condições impostas por credores que protegem os interesses de alguns segmentos privados restritos, e têm custos tremendos sobre as camadas mais desprotegidas da sociedade e sobre toda a gente que que vive do seu trabalho?

3.7 Há que ter presente, acima de tudo, que a dívida pública é apenas um dos múltiplos compromissos do Estado português. Além das suas obrigações contratuais juntos dos credores, o Estado tem deveres inalienáveis para com todas as cidadãs e cidadãos, quer das gerações presentes, quer das gerações futuras. O Estado português tem de ser o garante de direitos sociais fundamentais consagrados na Constituição e no direito internacional. Fazer prevalecer os direitos dos credores sobre todos os outros é ilegítimo não só do ponto de vista moral como do ponto de vista jurídico.

4 PRINCÍPIOS FUNDADORES DA INICIATIVA PARA UMA AUDITORIA CIDADÃ À DÍVIDA PÚBLICA

As actividades da Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida Pública portuguesa (IAC) são regidas pelos seguintes princípios fundadores:

a) Democraticidade – A IAC procura dotar as cidadãs e os cidadãos de novos instrumentos de monitorização, fiscalização e intervenção na vida pública que reforcem a democracia. A IAC é composta e legitimada por representantes dos vários segmentos da sociedade, por se entender só assim ser possível a intensificação do debate público sobre a dívida e a emergência de soluções que permitam afastar o cenário de declínio sem fim à vista;

b) Natureza participativa – A IAC coloca as cidadãs e cidadãos no centro de um processo com influência directa na vida política portuguesa, tornando a intervenção e participação cidadã numa componente fundamental dessa vida política. Procura-se, assim, mobilizar a participação cívica para a exigência de uma deslocação na abordagem ao problema da dívida, reorientando--a para a necessidade de uma reestruturação liderada pelo Estado português que torne o serviço da dívida compatível com os direitos fundamentais da população portuguesa e a sustentabilidade financeira do Estado português;

c) Transparência – A IAC rege-se pelos princípios fundamentais da transparência e prestação de contas. A estrutura e funcionamento da IAC serão alvo de escrutínio contínuo e a iniciativa compromete-se a prestar contas públicas de todas as suas operações e decisões.

d) Controlo pelos cidadãos – A IAC é uma plataforma que tem por base um modelo de participação cidadã na tomada colectiva de decisões políticas e económicas. A IAC procura garantir que a exigência, feita à população, de suportar a maior parte dos custos da crise seja acompanhada por uma capacidade activa na sua gestão.

e) Independência – A gestão do processo de financiamento da dívida pública tem sido centralizada nas mãos de tecnocratas, gestores de dívida pública e do sector financeiro nacional e internacional, sem legitimidade democrática. Uma auditoria que procure alternativas para a resolução do problema da dívida requer um processo participativo dinamizado por uma comissão independente dos interesses financeiros e políticos instalados, plural na sua composição e tecnicamente capacitada.

5 OBJECTIVOS DA AUDITORIA CIDADÃ À DÍVIDA PÚBLICA PORTUGUESA E DIFICULDADES A ULTRAPASSAR

5.1 O actual contexto nacional e internacional torna evidente a urgência de um processo de auditoria controlado pelas cidadãs e cidadãos que garanta em simultâneo o rigor, a exaustão, e a transparência. A Auditoria Cidadã à Divida Pública portuguesa deverá ser:

a) Uma auditoria integral, que terá um perímetro alargado. Por dívida pública entendem-se todos os compromissos assumidos directa e indirectamente pelo sector público administrativo, nomeadamente a dívida comercial, a dívida de privados garantida e/ou assumida pelo sector público, o endividamento das empresas públicas, as condições financeiras resultantes dos contratos das Parcerias Público-Privadas, o endividamento contraído pela tutela e pelas regiões autónomas. Compete à auditoria avaliar o processo de endividamento, o enquadramento institucional desse processo e os parâmetros de transparência inerentes a todos os procedimentos. Finalmente, procurar-se-á clarificar as relações circulares entre os detentores da dívida pública, em particular a banca, o Estado e o BCE, avaliando as suas implicações sobre o leque de escolhas políticas. No âmbito de uma auditoria integral, avaliar-se-á a legalidade, a legitimidade e a sustentabilidade económica, social e ambiental da assunção desses encargos.

b) Uma auditoria instrumental, que, não constituindo um objectivo em si mesma, terá como objectivo declarar, caso as conclusões do processo o suportem, a ilegalidade, a ilegitimidade, ou a insustentabilidade de parcelas da dívida pública, entendida no seu universo mais alargado, contribuindo assim para reforçar a exigência de uma reestruturação da dívida pública que proteja os interesses das cidadãs e cidadãos da República.

c) Uma auditoria pedagógica, que, para além da sua componente política, vise contribuir efectivamente para uma melhor compreensão do problema da dívida pública, procurando oferecer uma descrição detalhada e acessível da sua composição e das principais relações de força que medeiam este processo.

d) Uma auditoria participativa, que envolva uma componente técnica e o apoio e participação de especialistas, mas cujo processo seja controlado pelas cidadãs e cidadãos. Todo o processo deverá ser definido e implementado no sentido de ter a agilidade necessária para prestar contas a qualquer pedido de informação ou reivindicação efectuado por uma cidadã ou cidadão. A legitimidade do processo emana da comunidade cidadã e é, portanto, qualitativamente diferente das auditorias efectuadas por firmas de contabilidade e auditoria com conflitos de interesses, e cujos critérios de transparência e responsabilização são insuficientes para lhes ser atribuída credibilidade. O processo de auditoria cidadã deverá criar formas eficazes de disseminação regular e frequente dos resultados da investigação.

5.2 Em nome da transparência democrática, devemos enumerar alguns dos desafios que se apresentarão e os obstáculos que condicionarão, à partida, este processo:

a) As exigências técnicas inerentes à condução de uma auditoria;

b) Os obstáculos burocráticos à requisição e obtenção de documentação administrativa;

c) A definição adequada do perímetro do Estado;

d) A substituição acelerada de credores comerciais por instâncias internacionais;

e) A resistência política e administrativa à intervenção e participação cidadã;

f) A qualificação da auditoria como processo perverso, fútil e ameaçador da estabilidade;

g) A fraca mobilização da sociedade portuguesa para um processo delicado, exaustivo e moroso.

6. COMPOSIÇÃO ORGÂNICA DA IAC E SUAS INCUMBÊNCIAS

6.1 A IAC tem como órgão principal a Comissão de Auditoria (CA), entidade que articula uma participação cidadã activa com o contributo especializado de peritos, e que se rege pelos princípios fundadores da IAC. Este órgão pode apoiar-se em grupos de trabalho, nomeadamente um Grupo Técnico (GT) e criar uma Coordenação Executiva (CE) . Em termos gerais, incumbe à CA:

a) Definir o perímetro da dívida pública a auditar mediante uma avaliação da informação disponível e suas formas de acesso;

b) Definir o horizonte temporal da auditoria a realizar;

c) Avaliar o processo de endividamento e a situação actual da dívida pública nas suas diversas componentes;

d) Avaliar a sustentabilidade social da dívida pública, considerando, nomeadamente, o trade-off entre os juros pagos com o serviço da dívida e a despesa com outras componentes sociais e ambientais do orçamento, nomeadamente a provisão pública de bens fundamentais;

e) Assegurar a informação pública ao longo de todo o processo de auditoria;

6.2 No quadro dos seus objectivos, a IAC apoiará a iniciativa local e sectorial dos cidadãos e cidadãs, orientada para o escrutínio e transparência das contas públicas.

7. COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

7.1 A IAC enquadra-se dentro de um movimento internacional que tem por base a Declaração de Atenas e a Aliança Europeia de Iniciativas para Auditoria Cidadã. Nesse âmbito, irá:

a) Procurar apoio técnico junto das organizações que, à escala internacional, têm vindo a acumular conhecimento no domínio das auditorias à dívida pública e sua reestruturação;

b) Retirar todos os ensinamentos das experiências de auditoria cidadã realizadas noutros países;

c) Articular-se com processos semelhantes que decorrem noutros países no quadro da Aliança Europeia de Iniciativas para uma Auditoria Cidadã e com os movimentos subscritores da Declaração de Atenas;

d) Subscrever a Declaração de Atenas.


Lisboa, 17 de Dezembro de 2011

A Resolução da Convenção de Lisboa em formato pdf



COMISSÂO DE AUDITORIA CIDADÃ
Adelino Gomes
Albertina Pena
Alexandre Sousa Carvalho
Ana Benavente
António Avelãs
António Carlos Santos
António Romão
Bernardino Aranda
Boaventura Sousa Santos
Eugénia Pires
Guilherme da Fonseca Statter
Henrique Sousa
Isabel Castro
Joana Lopes
João Camargo
João Labrincha
João Pedro Martins
João Rodrigues
José Castro Caldas
José Goulão
José Guilherme Gusmão
José Reis
José Soeiro
José Vitor Malheiros
Lídia Fernandes
Luís Bernardo
Luísa Costa Gomes
Manuel Brandão Alves
Manuel Carvalho da Silva
Manuel Correia Fernandes
Maria da Paz Campos Lima
Mariana Avelãs
Mariana Mortágua
Martins Guerreiro
Octávio Teixeira
Olinda Lousã
Pedro Bacelar de Vasconcelos
Raquel Freire
Ramiro Rodrigues
Sandro Mendonça
Sandra Monteiro
Sara Rocha
Ulisses Garrido
Vítor Dias


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sábado, 26 de novembro de 2011


DIVIDOCRACIA (DEBTOCRACY)

UM GRITO DE ESPERANÇA PARA PORTUGAL

Na Internet, toda a gente fala do documentário sobre a crise grega preparado pelos jornalistas Katerina Kitidi e Aris Hatzistefanou e que tem por título "Debtocracy". Rodado com dinheiro próprio e com donativos de alguns amigos, o filme tem exibição gratuita em http://www.debtocracy.gr. Em menos de dez dias, foi visto por 600 mil utilizadores. Todos os dias, defensores e adversários do documentário apresentam os respectivos pontos de vista no Facebook, no Twitter e em blogues.
Os principais atores do documentário (cerca de 200 pessoas) assinam um pedido de criação de uma comissão internacional de auditoria, que teria por missão especificar os motivos da acumulação da dívida soberana e condenar os responsáveis. No caso vertente, a Grécia tem direito a recusar o reembolso da sua "dívida injustificada", ou seja, da dívida criada através de actos de corrupção contra o interesse da sociedade.
"Debtocracy" é uma acção política. Apresenta um ponto de vista sobre a análise dos acontecimentos que arrastaram a Grécia para uma situação preocupante. As opiniões vão todas no mesmo sentido, sem contraponto. Foi essa a opção dos autores, que apresentam a sua maneira de ver as coisas, logo nos primeiros minutos: "Em cerca de 40 anos, dois partidos, três famílias políticas e alguns grandes patrões levaram a Grécia à falência. Deixaram de pagar aos cidadãos para salvar os credores".
Os "cúmplices" da falência perderam o direito à palavra.
Os autores do documentário não dão a palavra àqueles que consideram "cúmplices" da falência. Os primeiros-ministros e ministros das Finanças gregos dos últimos dez anos são apresentados como elos de uma cadeia de cúmplices que arrastaram o país para o abismo.
O director-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, que se apresentou aos gregos como o médico do país, é comparado ao ditador Georges Papadopoulos [primeiro-ministro sob o regime dos coronéis, de 1967 a 1974]. O paralelo é estabelecido com uma facilidade notável desde o início do documentário mas não é dado ao personagem relevante (DSK) o direito a usar da palavra.
À pergunta "Porque não fazer intervir as pessoas apontadas a dedo", um dos autores, Kateina Kitidi, responde que se trata de "uma pergunta que deve ser feita a muitos órgãos de comunicação que, nos últimos tempos, difundem permanentemente um único ponto de vista sobre a situação. Nós consideramos que estamos a apresentar uma abordagem diferente, que faz falta há muito tempo". O público garante a independência do filme.
Para o seu colega Aris Hatzistefanou, o que conta é a independência do documentário. "Não tínhamos outra hipótese", explica. "Para evitar as limitações quanto ao conteúdo do filme, que as empresas [de produção], as instituições ou os partidos teriam imposto, apelámos ao público para garantir as despesas de produção. Portanto, o documentário pertence aos nossos 'produtores associados', que fizeram donativos na Internet e é por isso que não há problemas de direitos. De qualquer modo, o nosso objectivo é difundi-lo o mais amplamente possível."
O documentário utiliza os exemplos do Equador e da Argentina para suportar o argumento segundo o qual o relatório de uma comissão de auditoria pode ser utilizado como instrumento de negociação, para eliminar uma parte da dívida e do congelamento dos salários e pensões de reforma.
"Tentamos pegar em exemplos de países como a Argentina e o Equador, que disseram não ao FMI e aos credores estrangeiros que, ainda que parcialmente, puseram de joelhos os cidadãos. Para tal, falámos com as pessoas que realizaram uma auditoria no Equador e provaram que uma grande parte da dívida era ilegal", acrescenta Katerina Kitidi. Contudo, "Debtocracy" evita sublinhar algumas diferenças de peso e evidentes entre o Equador e a Grécia. Entre elas, o facto de o Equador ter petróleo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A LUTA IDEOLÓGICA
EM TORNO DA CRISE

POR: CARLOS CARVALHAS

A crise do sistema capitalista que estamos a viver e que continua em desenvolvimento tem dado lugar a uma intensa propaganda e criatividade de linguagem para desviar o pensamento das massas das verdadeiras causas da crise e fazê-las aceitar as falsas respostas.
A tese de que a crise teve origem na cupidez, na ganância, na ambição desmedida de alguns, e que hoje, sobretudo na Europa, ela é a consequência da dívida pública, continua a fazer o seu caminho.
É certo que houve especulação e complacência dos Bancos Centrais, que a crise rebentou em Agosto de 2007 e que começou no sector da habitação, que tomou proporções inesperadas para muitos e que a «inovação financeira» aumentou do «ponto de vista agregado o risco na economia, colocando o sistema à beira do colapso». Mas a crise não resultou da ganância de alguns, nem da falta de regulação do sistema bancário, nem do «crescimento excessivo do endividamento», que alguns consideram o exemplo mais recente e um dos mais notáveis do capitalismo na «dinâmica de expansão e contracção das economias. (1) Tudo isto se verificou. Mas são apenas as aparências casuais, os epifenómenos. Também não estamos perante «uma crise excepcional» (2), mas sim perante uma crise cíclica do capitalismo com características novas e específicas, agravada por novas situações – liberdade de circulação de capitais, deslocalizações, crescente peso das actividades financeiras e do «capital fictício», parasitário, especulativo, num quadro de domínio da ideologia neoliberal.
Crise de sobreprodução, crise de excesso de capital, cuja síntese passa pela destruição desse excesso em relação à taxa de lucro esperada. Uma crise de sobreprodução com extensão praticamente planetária «tendencialmente mundial», «sistémica», em relação ao subconsumo das massas (procura solvente).
Perante a concentração da riqueza e a perda do poder de compra dos trabalhadores, a tentativa de saída para a produção em relação à procura solvável das massas, foi o recurso ao crédito fácil e às exportações. Isto é, procurar saídas nos mercados dos outros e numa procura a crédito.
Para salvar os banqueiros e os accionistas, os Estados foram em socorro da banca com dinheiros públicos, nacionalizaram os prejuízos, criaram os «bad banks», para depois privatizar os lucros e endossar a factura aos contribuintes através dos impostos e do corte de despesa nas funções sociais do Estado. (3)
Depois da falência do Lemon Brothers até inventaram o «Big to Fail», isto é serem muito grandes para falirem, deixando cair milhares de pequenas e médias empresas e bancos, nomeadamente nos EUA.
Com uma campanha avassaladora fizeram esquecer a dívida privada, a dívida da banca ao exterior, que em muitos países é superior à dívida pública, como é o caso de Portugal, e conseguiram esconder que uma boa parte do crescimento da dívida pública se deveu à crise – injecção de dinheiro público na banca, nos subsídios de desemprego e prestações sociais, injecção de dinheiros públicos para tentar estimular a economia.
Conseguiram também fazer esquecer a responsabilidade da banca nesta crise e o facto de que o posterior aumento de impostos e o corte nas despesas sociais foram a outra face dos milhões que foram canalizados para o sistema financeiro.
Ao longo destes anos temos estado a resolver os problemas da dívida privada à custa da dívida pública.
Para justificar a drenagem de recursos para a banca através do corte na despesa orçamental, inventaram com criatividade a expressão corte «nas gorduras do Estado». Não há «papagaio» que não fale nas gorduras do Estado. É a linguagem do Spa, muito na moda e que aproveita a corrente das campanhas contra a obesidade.
Mas no essencial as medidas não vão no sentido da racionalização, nem da eliminação de gastos supérfluos, mas sim do desmantelamento do «Estado social». São cortes fundamentais na saúde, no ensino e na segurança social.
Por exemplo, em Portugal o Governo não corta nos subsídios à banca na ordem de milhões e esta despesa, verdadeira gordura do Estado, para utilizar a expressão destes, vai engordar os já anafados e obesos banqueiros e accionistas.
Mas não é só ao nível da linguagem e das expressões criativas. É também ao nível das Universidades e do ensino da teoria económica. Muitas destas universidades privadas, institutos e fundações, pertença directa ou indirecta de grandes grupos económicos (mas também as há públicas), o que ensinam é uma retórica e vulgata neoliberal, bem elaborada, a que não faltam expressões matemáticas para lhe dar um certo ar de cientificidade ao serviço das classes dominantes. Charlatanismo económico com os seus respectivos «catedráticos», os seus «académicos», que procuram com argumentos de autoridade e a conivência dos media, impor as suas ideias. As ideias dominantes são as da classe dominante e a ideologia económica dominante é a do neoliberalismo, vulgarizada por economistas e analistas nas universidades e grandes meios de comunicação, umas vezes por ignorância, por mimetismo, por interesse de classe e outras por interesse material (o filme «inside jobs» é muito esclarecedor destes casos). E, para além da linguagem, das expressões criativas e da produção ideológica nas universidades, temos também a simbiose entre o poder político e o poder económico, mesmo à «esquerda». Lembrar que Tony Blair deixou o governo e foi trabalhar para a J. P. Morgan, que Peter Mendelson está no Lazard, Roman Prodi na Goldeman Sachs, Gerard Shroeder no opaco conglemercardo financeiro, energético, da Gazpron.
Nos meios académicos, como testemunhava entre nós ainda recentemente um docente universitário (4), (…) «Os alunos aprendem logo no primeiro ano que a instituição de um salário mínimo cria desemprego. Mais tarde, ao nível pós-graduado, será confidenciado aos poucos que lá chegarem que, à luz da evidência disponível, essa proposição é tudo menos certa. Nessa fase do processo de doutrinação, porém, eles já estarão pouco disponíveis para questionar os dogmas da profissão. Quanto aos que não atingiram esse patamar, virão cá para fora de boa-fé papaguear a pseudo-ciência que lhes foi ministrada.
Os Nóbeis atribuídos nos últimos anos comprovam que os economistas investigam assuntos de grande relevância para o entendimento do funcionamento dos mercados, como sejam a psicologia dos consumidores, a informação assimétrica, as falhas de coordenação, os obstáculos à cooperação dentro das empresas ou as condições que favorecem o alargamento das desigualdades.
Todavia, a síntese dessa investigação que é servida aos estudantes e à opinião pública ignora sistematicamente as limitações da racionalidade humana e as falhas dos sistemas económicos que delas decorrem, em favor de uma visão cor-de-rosa do funcionamento dos mercados desregulados. Assim, embora o estudo do comportamento dos agentes económicos demonstre que os pressupostos da microeconomia estão errados, ela continua a ser ensinada como se nada fosse.» (...)
E todos estes sábios repetem mil vezes que «não há alternativa!» O conhecido acrónimo thatcheriano «Tina», «there is no alternative», é a resposta do pensamento único e dos que são responsáveis pela situação em que nos encontramos. Não há alternativa ao capitalismo, não há alternativa ao neoliberalismo, não há alternativa ao cumprimento do acordo com a troika...
Como já alguém disse, estes propagandistas da submissão e do conformismo também não descuram o marketing e a propaganda.
O salário é sempre na boca destes um «custo do trabalho», a diminuição dos salários é embrulhada na expressão «aumento de flexibilidade sobre o mercado do trabalho» ou «moderação salarial» e o desmantelamento do Estado Social naquilo que designam por «reformas estruturais». As quotizações sociais são sempre «encargos sociais», os patrões são «empregadores», a exploração desapareceu do léxico e os trabalhadores passaram definitivamente a «colaboradores», etc., etc.
A crise do sistema monetário internacional
O curso do dólar e o euro tem sido errático ao longo destes tempos. A chamada «guerra cambial» ou «guerra das moedas» tem-se traduzido nas disputas entre países na procura de ganhos de competitividade – desvalorizações para aumentar as exportações, movimentos especulativos sobre tal ou tal divisa (o yen japonês, o franco suíço...) e a luta pela manutenção dos privilégios do dólar, moeda de reserva mundial e intermediária internacional de troca, designadamente na compra de matérias-primas – petróleo, gás – contra o euro que se quer afirmar como moeda de reserva mundial.
O dólar tem visto o seu estatuto de moeda de reserva ser posto em causa devido à dívida externa dos EUA, à emissão de dólares sem correspondência à produção de bens e serviços para a resolução dos problemas do sobre-endividamento. Por isso, os EUA, acompanhado a maior parte das vezes pela Inglaterra, tem procurado ampliar e tirar partido dos problemas da zona euro, designadamente os ligados à dívida externa dos países periféricos, para descredibilizar o euro.
As reservas de divisas mundiais representam actualmente o equivalente a 9694 milhares de milhão de dólares (FMI, 31.03.2011), sendo 61% titulados em dólares US e 27% em euros. As duas moedas representam cerca de 90% das reservas de troca mundiais. A libra e o yen são respectivamente a terceira e quarta moeda mais importantes. Há dez anos a parte correspondente ao dólar era 10% superior à actual e a do euro era menor. O euro tem vindo a afirmar-se como moeda de reserva e investidores asiáticos, tal como russos, brasileiros e outros, têm procurado ficar menos dependentes do dólar. Para se ter uma ideia dos ganhos e perdas que se podem ter com a flutuação cambial das moedas e os movimentos especulativos, basta ver que o montante médio diário das transacções em 2010 foi de 4000 milhares de milhão de dólares. Estes fluxos monetários continuam a ser dominados pelo dólar. O euro subiu ligeiramente, passou de 18,5% para 19,5%. Mas a disputa continua, num quadro de grande instabilidade financeira, económica e social.
O Banco Asiático para o Desenvolvimento há muito que pressiona os seus membros para a criação de uma moeda comum, mas poucos passos foram dados. A Rússia, a Venezuela e o Brasil têm vindo a aumentar as suas trocas nas moedas nacionais e a pressão para a reformulação do sistema monetário internacional, da parte destes países e da China, tem aumentado. A evolução para uma moeda tendo por referência um cabaz de moedas fortes com uma parte em ouro, ou para a utilização dos direitos de saque especiais do FMI com base num mesmo cabaz, são propostas que surgem com peso, periodicamente. Mas que esbarram com a oposição directa ou indirecta dos EUA e da Inglaterra, que utilizam toda a sua força e pressão – designadamente militar – junto dos países produtores de petróleo, para que a sua cotação e transacção se faça em dólares, mantendo o status quo do sistema monetário internacional.
O euro tem flutuado entre 1,39 e 1,45, em relação ao dólar, embora o dólar tenha manifestado uma tendência para a baixa a longo prazo. A China e o Brasil, a Suíça e o Japão vão lutando contra as pressões e movimentos especulativos no sentido da apreciação das suas moedas.
Nos EUA, o recente aumento do tecto da dívida decidida pelo Congresso não suscitou nenhuma reacção por parte da China. Mas este país não tem estado a comprar Títulos de Tesouro americanos desde Outubro do ano passado e terá mesmo reduzido o seu montante em cerca de 15 milhares de milhão. O Ministro das Finanças americano estima que a China detém 1160 milhares de milhão de dólares de Títulos do Tesouro dos EUA. A China e o Japão são os maiores detentores da dívida americana.
A confrontação entre o dólar pela manutenção dos privilégios e o euro e outras divisas que procuram conquistar posições como moedas de reserva e de troca internacionais é uma luta estratégica que explica muito dos comportamentos dos EUA e da Wall Street, bem como da Inglaterra e da City e do Banco Central Europeu.
A construção de um euro forte à imagem do marco de modo a credibilizar a moeda internacionalmente como moeda de reserva é a principal linha orientadora da política monetária e cambial do BCE e não a coesão económica e o desenvolvimento da zona euro como um todo, o que implicaria um euro muito menos valorizado. Esta política tem dificultado as exportações e agravado a situação dos países com economias mais débeis. (5)
Por sua vez, na União Europeia muitos dos países com dívidas públicas e privadas e dívidas externas extremamente elevadas jamais terão possibilidade de as resgatar. A solução, mais cedo ou mais tarde, terá de passar pelo corte da dívida (hair cut). Reestruturação das dívidas de forma mais ou menos planeada. A recusa e o protelamento da resolução das dívidas destes países põem em causa toda a estratégia de credibilização do euro. É uma contradição insanável. E tudo isto se irá complicar quando a Grécia declarar o incumprimento, ou tiver de pedir novos empréstimos (está-se só a ganhar tempo, já se fala num corte da dívida grega de 50%) e quando a crise chegar com mais acuidade à Espanha e à Itália, pois estes dois países, como já alguém disse, são muito grandes para falirem e são também muito grandes para serem salvos «too big to fail» e «too big to save»!
Os cortes das dívidas públicas a «mata-cavalos», em períodos tão curtos, afundam os países no marasmo e na recessão, acentuando a sua insolvabilidade. E as privatizações de empresas altamente rentáveis alivia, ganha tempo, mas é a condenação a maior dependência e a maior drenagem de recursos (dividendos, lucros) para o exterior.
Os recentes ataques de Fundos Americanos a bancos europeus, nomeadamente franceses, deixando-os desprovidos de dólares, o que fez baixar a sua cotação e notação, bem assim como a posterior intervenção coordenada dos Bancos Centrais, inserem-se na estratégia anglo-saxónica de enfraquecer o euro e o sistema bancário europeu e de mostrar ao mundo a importância do dólar. Os bancos europeus tinham euros mas não tinham dólares e não conseguem financiar a compra do gás, do petróleo, por exemplo! Na mesma linha está a ampliação através da comunicação social e da imprensa financeira e económica especializada, dominada pela City e Wall Street, dos problemas da zona euro e das dívidas públicas dos países periféricos. Mesmo algumas das declarações de Barack Obama não são inocentes e visam o mesmo objectivo: descredibilizar a zona euro em benefício do dólar (6). É por isso que quando a Alemanha, a União Europeia e o Banco Central Europeu quiseram penalizar a Grécia, ou fazem chantagem sobre a Grécia e outros países, pensando que estão sozinhos no mundo, Wall Street e a City de Londres, e as suas correias de transmissão, as empresas de «notação», aproveitaram a situação para criar um clima negativo e de dúvida sobre a zona euro, o que os obriga a «meter a chantagem no saco» e a tentar resolver os problemas.
A dívida externa dos EUA também não é resgatável e só se pode manter enquanto o mundo continuar a comprar dólares e Títulos do Tesouro americanos.
A resposta à crise, sobretudo da parte da UE, tem-se inscrito na ortodoxia neoliberal – diminuição dos salários, liquidação de direitos, desmantelamento do Estado Social, privatizações, com todos os países a procurar ao mesmo tempo nas exportações a solução para a marasmo económico. A absolutização da redução do défice através da diminuição de salários, pensões e prestações sociais vai continuar a agravar não só a situação social, como a situação económica e financeira.
Na verdade, todos estes planos de austeridade têm em comum passar a factura para os contribuintes e os trabalhadores, alimentar a recessão e sobrestimar as receitas futuras. Por isso, não é de estranhar as sucessivas revisões em baixa do crescimento destes países e de crescimento mundial. Está-se numa nova espiral descendente económica e financeira. E os dois principais vectores da política económica continuam a ser: diminuição dos salários e mais crédito para relançar o crescimento. Precisamente os vectores que estiveram na origem da crise do «sub-prime» e desta crise – uma distribuição desigual do Rendimento Nacional, a concentração da riqueza e o desenvolvimento do crédito para manter o consumo.
As contradições do capitalismo têm-se agudizado, bem assim como as rivalidades inter-imperialistas, designadamente em torno das perspectivas do sistema monetário internacional. É a esta luz que têm que ser vistos os desacordos entre os EUA e a UE na resposta à crise, ou as declarações de Tim Geihner em nome dos americanos, na reunião dos ministros das Finanças da UE, na Polónia, no dia 27 de Setembro, de que os europeus deveriam reforçar o Fundo Europeu de Estabilização Financeiro (FEEF) a fim de terem meios para reforçar os seus bancos.
Estas divergências ainda ficaram mais claras na reunião anual de Washington de 24 e 25 de Setembro de 2011, do FMI e BM: os americanos dando prioridade aos programas de criação monetária para relançar a economia e a UE dando prioridade à estabilização das finanças públicas e da banca através de dinheiros públicos. (7)
Contradições do capitalismo
São conhecidas as contradições fundamentais do capitalismo, que esta crise expressa com toda a clareza e evidência, bem como a luta de classes nos seus diversos planos. E a este propósito não deixa de ser reveladora a declaração há uns meses atrás do multimilionário americano Buffet de que ele sabia que estava a haver luta de classes, mas que era a sua classe que estava a ganhar, para mais recentemente vir defender um novo imposto sobre os ricos («deixem-se de apaparicar os ricos»). É a consciência de quem sente que é melhor dar alguma coisa antes que as coisas dêem para o torto!
Mas no quadro actual há uma nova contradição, simultaneamente ampliada e consequência de uma das maiores conquistas das classes dominantes na nossa época: a liberdade de circulação de capitais.
Essa contradição resulta das deslocalizações facilitadas pela livre circulação de capitais e impulsionadas pelo avanço das novas tecnologias, designadamente telecomunicações, informação e que têm também estado no centro de uma mistificação ideológica. É a exportação de capitais de forma exponencial (Lénine, O imperialismo estado supremo do capitalismo), expressa nas fórmulas de globalização das mercadorias e globalização financeira (ver, entre outros, Jacques Sapir, La demondialization, ou Eric Laurent, Le scandale des deslocalizations).
As deslocalizações, sobretudo pelos grandes grupos económicos e financeiros (mas até pelas administrações públicas) (8), deram lugar a altíssimas taxas de lucro destas empresas e a uma fantástica evasão fiscal. Mas com a passagem do tempo viu-se que a destruição de empresas resultante das deslocalizações maciças não foi compensada pela criação de empregos nos serviços e novas tecnologias. Que os empregos perdidos não se situavam só nos baixos salários, pois atingem hoje os empregos mais qualificados e os níveis salariais mais altos – investigadores, quadros informáticos, engenheiros e especialistas de ponta –, nem que a repatriação dos lucros tenha irrigado toda a economia – teoria do derrame. O que se verificou e está a verificar é a intensificação da concentração da riqueza, condenando o consumo de massas e o consumo popular (9) e agravando a procura solvente e o escoamento da produção. Hoje esta situação tende a agudizar o quadro social e as tensões sociais e políticas.
Por um lado, os governos sentem-se pressionados pelas populações sem emprego e com sucessivas reduções de poder de compra e nível de vida, e é a essa luz que se têm de ver os apelos de Barack Obama e Sarkozy à reindustrialização dos respectivos países, e, por outro, a pressão do grande capital que quer manter o status quo defendendo cada vez maior liberalização do comércio internacional, maiores garantias para os seus capitais exportados e opondo-se a qualquer forma de defesa da produção local ou interna. O proteccionismo passou a ser um tabu e a «livre concorrência não falseada», o dogma dos dogmas e o mito dos mitos do desenvolvimento económico. Os que lucraram, com as deslocalizações até se servem de argumentos sociais. É curioso ver representantes do grande capital a exaltar o livre-cambismo que, segundo eles, criou «milhões de empregos no Terceiro Mundo» e retirou «milhões da fome e da miséria». A intensa campanha ideológica deixou desarmada certa «esquerda» que não põe em causa o capitalismo e que se colocou na primeira linha na repetição de slogans bem elaborados, como o «não à Europa fortaleza», «não ao proteccionismo», «sim à globalização regulada»...
Hoje mais de metade dos produtos manufacturados consumidos nos EUA e na Europa são importados. E, agudizando ainda mais as contradições, os produtos que antes tinham ciclos de vida longos têm vindo a ter ciclos de vida cada vez mais curtos pela variação de pequenas alterações tecnológicas, de forma, de cor, tornando cada vez mais difícil a sua amortização.
Nos EUA são cada vez mais os que se interrogam sobre se as deslocalizações são benéficas ou nefastas para a América.
Para convencer os americanos dos benefícios das deslocalizações, os grandes grupos económicos contratam empresas especializadas e académicos, pagando e subsidiando «estudos» enganadores e parciais.
Vários relatórios são autênticos documentos de lobbying pró-deslocalizações. No entanto, depois de vários estudos, a publicação do «Outsourcing América» pelo «American Management Association» sobressaltou políticos e académicos ao evidenciar os efeitos negativos e ao mostrar que apesar disso muitos responsáveis políticos e promotores das deslocalizações continuam numa situação de negação.
É neste quadro de crise global do capitalismo, com as velhas e novas contradições, que se devem analisar os acontecimentos e impulsionar a luta de massas, a luta popular, em todas as frentes.
Notas
(1) Fernando Alexandre, Crise Financeira Internacional. Estado de Arte. Ver Gandra Martins e outros. Universidade de Coimbra, 2009.
(2) Ibiden.
(3) O BPN e o BPP irão custar ao erário público muito perto de 4,5 mil milhões de euros.
(4) João Pinto e Castro, Jornal de Negócios, 15.06.2011.
(5) Portugal tem sido particularmente afectado pelo euro forte devido à estrutura das suas exportações e ainda porque a Taxa de Câmbio definida no momento adesão se traduziu numa desvalorização da peseta em 30% e do escudo em apenas 12%.
(6) Com a recente campanha americana sobre a crise europeia – veja-se, entre outras, a recente declaração (26.09.2011) de Barack Obama, em Silicon Valley, de que a crise do euro assustou o mundo, o dólar recuperou terreno e os Títulos do Tesouro americanos voltaram a ser reconhecidos como valores refúgio! Fantástico!
7) Com o agravamento da crise, mesmo os mais ortodoxos vão cedendo: Wolfgang Schauble, ministro das finanças alemão, disse que não se opõe a que a criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade, que deve substituir o Fundo Europeu de Estabilidade, não espere por 2013. Por sua vez, a nova directora do FMI pede com urgência o aumento dos meios financeiros do FMI, no que tem tido o apoio dos chineses e a oposição dos americanos!
(8) Eric Laurent, no seu livro Le scandale des deslocalizations, cita o caso de um trabalhador americano que, telefonando para a segurança social para procurar conhecer os seus direitos por ter perdido o emprego, se deu conta que estava a falar para a Índia, para onde se tinha deslocalizado aquele serviço da Administração Pública.
(9) Joseph Stiglitz diz que os EUA são cada vez mais um país rico com populações pobres.

domingo, 20 de novembro de 2011

CRISE SISTÉMICA GLOBAL

GEAB Nº59 -15 DE NOVEMBRO DE 2011

US$30x1012 de activos fantasmas desaparecerão daqui até o início de 2013

 A crise entra na fase de desconto generalizado das dívidas ocidentais

Chegamos quase ao fim do segundo semestre de 2011 e, desde Julho último, 15 milhões de milhões (1012 ) de activos fantasmas já se dissolveram em fumo, como antecipado pelo LEAP/E2020 ( GEAB nº 56 ). E, segundo nossa equipe, este processo vai prosseguir ao mesmo ritmo ao longo de todo o ano que vem. Estimamos com efeito que, com a efectivação do desconto de 50% sobre as dívidas públicas gregas, a crise sistémica global entre numa nova fase: a do desconto generalizado das dívidas públicas ocidentais e do seu corolário, a fragmentação do mercado financeiro mundial. Nossa equipe considera que 2012 verá um desconto médio de 30% do conjunto das dívidas públicas ocidentais [1] ao que se acrescentará um montante equivalente de desaparecimento de activos dos balanços dos estabelecimentos financeiros mundiais. Concretamente, o LEAP/E2020 antecipa pois o desaparecimento de 30 milhões de milhões (1012 ) de activos fantasmas daqui até o início de 2013 [2] e a aceleração ao longo de 2012 do processo de partição do mercado financeiro mundial [3] em três grandes zonas monetárias cada vez desconectadas: Dólar, Euro, Yuan. Estes dois fenómenos alimentam-se mutuamente. Eles vão nomeadamente provocar a baixa de 30% da divisa estado-unidense em 2012 [4] , como havíamos anunciado em Abril último ( GEAB nº 54 ). Portanto, o fim de 2011 vai assistir, tal como previsto, as dívidas públicas europeias actuarem como detonador para o desencadear da implosão da bomba estado-unidense.
Neste GEAB nº 59 analisamos em pormenor esta nova fase da crise assim como o próximo agravamento da crise de dívida dos EUA. Começamos igualmente a apresentar, como anunciado nos GEABs anteriores, nossas antecipações sobre o futuro dos Estados Unidos para o período 2012-2016 [5] começando por um aspecto fundamental das relações euro-americanas (e mais geralmente do mundo tal como se conhece desde 1945), a saber a relação militar estratégica EUA-Europa: estimamos que em 2017 o último soldado estado-unidense terá deixado o solo da Europa continental. Finalmente, o LEAP/E2020 apresenta suas recomendações. Este mês: divisas, ouro, reformas por capitalização, sector financeiro, matérias-primas.
Neste comunicado público optámos por apresentar os elementos que determinam o próximo agravamento da crise da dívida dos EUA, fazendo também o balanço das consequências da cimeira europeia do fim de Outubro e da cimeira do G20 em Cannes.
Gráfico 1. Como antecipado pelo LEAP/E2020 desde há vários meses, a cimeira do G20 de Cannes revelou-se um fracasso flagrante uma vez que não deu lugar a absolutamente nenhuma medida significativa, revelando-se incapaz de abordar as questões da mudança do sistema monetário internacional, do relançamento da economia mundial e da reforma da governação global. Se a questão grega tomou tanta relevância no decorrer da cimeira, isto aconteceu nomeadamente porque esta não tinha qualquer conteúdo. George Papandreu permitiu assim ao dirigentes do G20 "fazerem como se" a Grécia houvesse perturbado os seus trabalhos [6] quando, de facto, permitiu-lhes esconder em parte a sua impotência para definir a mínima agenda comum. Paralelamente, as decisões da cimeira europeia da semana que precedeu o G20 ilustram doravante de maneira oficial a emergência da Eurolândia (dotada nomeadamente de duas cimeiras específicas por ano [7] ) e afirmando de facto seu primado decisional no seio da UE [8] . A pressão da crise permitiu igualmente em alguns dias reforçar as capacidades políticas da Eurolândia para progredir no caminho de uma integração acrescida [9] , condição prévia para toda evolução positiva rumo ao mundo pós crise [10] .
Assim, um governo de unidade nacional estabeleceu-se finalmente na Grécia [11] , onde é preciso literalmente construir um Estado moderno dotado de um cadastro, de uma administração eficaz e que permita aos gregos serem cidadãos "normais" da Eurolândia e não súbditos de um sistema feudal em que grandes famílias e a igreja partilham a riqueza e o poder [NR] . Trinta anos após a sua integração incondicional na Comunidade Europeia, a Grécia vai ter de passar por uma fase de transição de cinco a dez anos como a experimentaram os países da Europa central e oriental antes do seu acesso à UE: doloroso, mas inevitável.

Assim, a Itália finalmente chegou a desembaraçar-se de um líder típico do mundo anterior à crise, caracterizado pelas suas lantejoulas, seu negocismo, sua relação sem escrúpulos com o dinheiro, sua auto-satisfação tão recorrente quanto infundada, seu domínio mediático, seu eurocriticismo recorrente, seu nacionalismo de pacotilha [12] e, naturalmente, sua libido desmesurada. As cenas de alegria nas ruas italianas mostram que não há apenas aspectos maus na crise sistémica global! Como indicávamos nos GEAB anterior, consideramos mesmo que 2012 será para a Eurolândia o ano de transição que permitirá encetar a construção do mundo pós crise ... e não apenas sofrer as desgraças do mundo anterior à crise.
Assim o Reino Unido é muito simplesmente e de modo definitivo "posto à porta" das reuniões da Eurolândia [13] . E os outros países da UE fora da zona euro reagruparam-se novamente atrás da Eurolândia recusando-se a apoiar a proposta britânica de um direito de veto dos 27 sobre as suas decisões. A deriva do Reino Unidos experimenta portanto uma forte aceleração o que é ilustrado pelas tentativas aumentadas dos eurocépticos britânicos (que são geralmente os soldados da City [14] ) de tentar cortar rapidamente o máximo de ligações com a Europa continental [15] . Longe de ser uma prova do êxito da sua política, é ao contrário uma confissão de fracasso completo [16] : após vinte anos de tentativas ininterruptas, eles não conseguiram romper o processo de integração europeia que renasce sob a pressão da crise. Eles tentam portanto "cortar as amarras" por temor (bem fundamentado [17] ) de ver o Reino Unido obrigado a fundir-se na Eurolândia daqui até o fim desta década [18] .
No fundo, é uma fuga para a frente desesperada que, como sublinha Will Hutton, num artigo notável de lucidez publicado no Guardian de 30/10/2011, não pode conduzir o Reino Unido senão a um estilhaçamento com uma Escócia que quer reivindicar não só a sua independência [19] mas igualmente sua ancoragem europeia, e a uma situação sócio-económica de mercado financeiro offshore sem protecção social [20] nem base industrial [21] : em resumo, um Reino Unido à deriva [22] !
E como o aliado americano está num estado tão desesperado, a deriva pode eternizar-se para maior infelicidade do povo britânico que se mostra cada vez mais agressivo para com a City. Mesmo os antigos combatentes começam a aderir ao movimento Occupy the City [23] : visivelmente, sobre este ponto, há uma espantosa convergência de pontos de vista entre a Eurolândia e o povo britânico!
Gráfico 2. Para se consolarem, os financeiros britânicos poderão dizer que detêm a maior proporção de activos públicos japoneses fora do Japão... mas no momento em que, cada vez com mais firmeza, o FMI adverte o Japão acerca do risco sistémico da sua dívida pública que ultrapassa os 200% do PIB [24] , será isso um consolo?
Uma vez que falamos de endividamento público, é tempo de voltar aos Estados Unidos. As próximas semanas vão efectivamente lembrar ao mundo que é exactamente este país, e não a Grécia, que está no epicentro da crise sistémica global. Em uma semana, a 23 de Novembro, a "super-comissão" do Congresso encarregada de reduzir o défice federal dos EUA deverá confessar o seu fracasso em encontrar os US$1500 mil milhões de economias ao longo de dez anos. Cada partido aguça já seus argumentos para despejar o fracasso no outro campo [25] . Quanto a Barack Obama, à parte os seus sorrisos afectados na televisão junto a Nicolas Sarkozy, contempla passivamente a situação enquanto constata que o Congresso rasgou em pedaços seu grande projecto de plano para o emprego apresentado com fanfarras há apenas dois meses [26] . E não é o anúncio completamente irrealista de uma nova união aduaneira do Pacífico (sem a China) [27] – na véspera da cimeira da APEC em que chineses e americanos se enfrentam cada vez mais duramente – que vai reforçar a sua estatura de chefe de Estado e ainda menos as suas possibilidades de reeleição.
Este fracasso previsível da "super-comissão", que apenas reflecte a paralisia total do sistema político federal americano, vai ter consequências imediatas e muito pesadas: uma nova série de degradações da classificação de crédito dos Estados Unidos. A agência chinesa Dagon abriu o fogo confirmando que ia novamente baixar esta nota em caso de fracasso da "super-comissão" [28] . A S&P provavelmente vai baixar mais um ponto da classificação estado-unidense e assim a Moody's e Fitch não terão outras opções senão colocarem-se no mesmo diapasão uma vez que ambas haviam dado uma trégua até o fim do ano sob a condição de resultados em matéria de redução do défice público. A propósito: para tentar diluir a informação negativa para os Estados Unidos, é muito provável que haja uma tentativa de relançar a crise do endividamento público na zona Euro [29] rebaixando a classificação da França para enfraquecer o Fundo Europeu de Estabilização Financeira [30] .
Tudo isso prepara um fim de ano muito movimentado nos mercados financeiros e monetários e vai implicar choques violentos nos sistemas bancários ocidentais e, para além disso, para todos aqueles que são detentores de Títulos do Tesouro dos EUA. Mas para além do fracasso da "super-comissão" em reduzir o défice federal, é toda a pirâmide do endividamento estado-unidense que vai novamente ser auscultada, num contexto de recessão mundial, inclusive americana: queda das receitas fiscais, prosseguimento do aumento do número de desempregados e em particular de desempregados que não recebem mais subsídios [31] , prosseguimento da queda dos preços do imobiliário, ...
Gráfico 3.
Mantenhamos em mente que a situação do endividamento privado nos EUA é claramente pior que a da Grécia! E que, neste contexto, estamos a uma polegada do pânico geral quanto à capacidade dos Estados Unidos para reembolsar a sua dívida de outra forma que não seja com dólares desvalorizados. Este fim de 2011 vai portanto levar numerosos detentores da dívida americana a colocarem-se seriamente a questão desta capacidade e do momento em que ela será subitamente posta em causa pelos operadores [32] .
O que é que os Estados Unidos podem propor após um fracasso da super-comissão? Não grande coisa de facto, sobretudo em ano eleitoral. De um lado porque ela foi criada porque nada mais funcionava; de outro lado porque a questão não é tanto o montante e sim a capacidade para empreender uma redução significativa no tempo. E o fracasso da "super-comissão" será percebido justamente como a incapacidade dos Estados Unidos para enfrentar o problema do défice.
Quanto ao montante, um cálculo rápido enviado por um dos leitores americanos do GEAB permite constatar até que ponto os "esforços" de redução orçamental encarados actualmente são ridículos em relação às necessidades. Se se considerar o orçamento federal dos Estados Unidos como o de uma família, as coisas ficam claras. Basta retirar 8 zeros para ter um orçamento que significa algo para cada cidadão:
Receita familiar anual (impostos sobre o rendimento): +21 700
Despesas familiares (orçamento federal): +38 200
Novas dívidas no cartão de crédito (dívida anual): +16 500
Dívidas passadas no cartão de crédito (dívida federal): +142 710
Cortes orçamentais já efectuados: -385
Objectivo de redução orçamental da super-comissão (durante um ano): -1 500
Como se pode facilmente verificar, a "super-comissão" (assim como o Congresso no seu conjunto, em Agosto último) não chegam sequer a entender-se para reduzir em 10%... o aumento anual da dívida federal. Pois trata-se exactamente disso: ao contrário da Europa que, em alguns meses, inventa novos mecanismo e reduz muito fortemente as suas despesas e o seu endividamento futuro [33], os Estados Unidos continuam a afundar a toda velocidade num endividamento crescente. Para o próximo semestre, Washington prevê emitir US$846 mil milhões de Títulos do Tesouro, ou seja, 35% mais que o ano passado no mesmo período [34].
Gráfico 4.
Com a falência do fundo de investimento MF Global viu-se como os mestres da Wall Street podiam desmoronar de repente devido aos seus erros de estratégia sobre a evolução das dívidas públicas europeias. Jon Corzine não é Bernard Madoff . Em termos de sentido moral ele deve certamente estar próximo mas, quanto ao resto, não é nada comparável. Madoff era um franco-atirador da Wall Street ao passo que Corzine é a grande aristocracia: antigo presidente director geral da Goldman Sachs, antigo governador de Nova Jersey, principal doador da campanha Obama para 2012, considerado em Agosto último para substituir Tim Geithner no posto de secretário de Estado do Tesouro [35]… de facto um dos "criadores" de Obama em 2004 [36] . Este caso atinge o cerne da relação incestuosa Wall Street / Washington que a partir de agora a maioria dos americanos denuncia [37].
Assim, em Agosto último ele aparecia como um "intocável" no topo da Wall Street. Contudo, enganou-se totalmente sobre a evolução dos acontecimentos. Ele acreditou que o mundo de antes continuava e que, como "sempre", os credores privados seriam reembolsados "até o último cêntimo". Resultado: perdas enormes e uma falência que fez com que muitos dos seus clientes perdessem dinheiro e pôs 1600 empregados na rua [38].
No GEAB anterior anunciámos que entrávamos na fase de dizimação dos bancos ocidentais. Esta fase principiou e os clientes do conjunto dos operadores financeiros (bancos, seguros, fundos de investimento, fundos de pensão [39]) devem doravante colocar-se questões sobre a solidez destas instituições. E como mostra o caso Corzine, eles não devem, sobretudo, supor que pelo facto destas instituições ou seus dirigentes serem conhecidos e dotados de uma sólida reputação são a priori mais sólidos que os outros [40]. Doravante não é o bom conhecimento das regras do jogo financeiro de ontem (que fez a sua reputação) que conta, é a aptidão para compreender que as regras do jogo mudaram que se tornou determinante.
15/Novembro/2011

NOTAS
(1) Que montam a mais de US$45 milhões de milhões em 2010 só para os Estados Unidos, Japão, Reino Unido e Eurolândia.
(2) Quanto mais a crise se agrava, mais a quantidade de activos-fantasma aumenta. Este processo continuará até que se encontre uns rácios activos financeiros / activos reais compatíveis com um funcionamento sócio-económico sustentável, provavelmente em torno dos rácios dos anos 1950/1970.
(3) Encadeado com a crise da dívida grega que se traduz nomeadamente por um desligamento rápido do sistema financeiro da Eurolândia para fora do dólar. O facto de que este processo tenha sido inibido na origem pela Wall Street e pela City para "partir" a zona euro não faz senão ilustrar novamente por um lado a ironia da História e, por outro, o facto de que quando uma época termina todas as acções dos actores do mundo que desaparece voltam-se in fine contra eles.
(4) Mesmo o Financial Times já reconhece que o dólar dos EUA tornou-se mais frágil do que o euro. Fonte: FT, 04/11/2011
(5) Nossas antecipações sobre a UE e a Eurolândia farão parte de uma próxima emissão do GEAB.
(6) A única coisa perturbada seriamente pela Grécia foi o plano de comunicação do presidente francês Nicolas Sarkozy, o qual pretendia fazer das cimeiras europeias e do G20 um duplo trampolim para tentar recuperar credibilidade junto aos franceses. Nesta matéria, tratou-se de um duplo fracasso: longe de ter resolvido a crise grega como havia anunciado na televisão, ela explodiu novamente na véspera do G20. Quanto ao G20, um resultado nulo dá a nota do seu organizador: zero! O LEAP/E2020 aproveita esta ocasião para confirmar sua antecipação de 15 de Novembro de 2010 (GEAB nº 49) e mantém que o candidato da UMP (Sarkozy ou um outro) não participará da segunda volta da eleição presidencial francesa de 2012 que se disputará portanto entre o candidato do PS, François Hollande, e a candidata da Frente Nacional, Marine Le Pen.
(7) E não se pode senão constatar que são decisores de nível europeu (Mario Monti, antigo comissário europeu, na Itália, e Lucas Papademos, antigo vice-presidente do BCE, na Grécia) que, tanto na Grécia como na Itália, tomam as rédeas do poder consagrando aí também a integração acelerada da zona euro e inclusive ao nível político. Esta situação vai igualmente reforçar a urgência de reformas institucionais democráticas para a governação da Eurolândia pois estes povos não aceitarão durante mais de um ano uma tal evolução em que eles não são senão espectadores. É preciso notar que a maior parte dos cidadãos alemães, franceses, italianos, espanhóis…, não consideraram totalmente aberrante a proposta de referendo grego sobre as medidas anti-crise, ao contrário dos seus dirigentes. Sem se dar conta, George Papandreu provavelmente estimulou fortemente a exigência de um futuro referendo trans-Eurolândia sobre a governação da zona euro daqui até 2014/2015. Ver a respeito o artigo de Franck Biancheri publicado em 06/10/2011 no Fórum Anticipolis .
(8) O Reino Unido paga um preço imediato (retornamos a isto neste GEAB) pois vê a sua marginalização confirmada e reforçada: perdeu toda capacidade de influência sobre a Eurolândia. Igualmente, sinal dos tempos, Nicolas Sarkozy permitu-se rejeitar David Cameron violentamente dizendo-lhe que os dirigentes da zona euro estavam fartos de ouvi-lo dar conselhos para a boa gestão do euro quando ele é fundamentalmente contra a divisa europeia. Nicolas Sarkozy não sendo forte senão com os fracos, o "índice de força" de Cameron está portanto caído bem baixo! Fonte: AlJazeera, 24/10/2011
(9) Fonte: Business Week, 14/11/2011
(10) Isso não significa absolutamente que o LEAP/E2020 considere que a situação é boa na Eurolândia pois o conjunto da UE de facto já entrou em recessão (como igualmente os EUA), pois o desafio do desendividamento público permanece aberto ainda que se multipliquem as ferramentas para tratar o problema (dentre elas novos descontos de dívidas públicas) e portanto a cólera popular (como igualmente no resto do mundo) está em vias de ampliar-se em todos os casos de países em que nenhuma alternativa política crível parece possível. Fontes: Le Monde, 17/10/2011; Libération, 18/10/2011; La Tribune, 07/11/2011; ANSA, 08/11/2011; Spiegel, 11/11/2011; Les Affaires, 10/11/2011
(11) Uma estréia histórica. Fonte: Spiegel, 07/11/2011
(12) As duas tendências vão geralmente a par junto aos líderes políticos: o eurocepticismo é na maior parte do tempo uma roupagem ideológica de uma realidade bem terra a terra: a sua vontade de continuar a utilizar o seu poder como bem quiser no seu país. De Vaclav Klaus na República Chéquia aos eurocépticos conservadores no Reino Unido passando pelo eurocriticismo recorrente de Berlusconi e das elites eurocépticas suecas, um grande ponto comum: deixe-nos fazer o que se quer no nosso país e não venham perturbar nossos cidadãos com ideias vindas de alhures. Para fazer passar a coisa diante da sua opinião pública, basta mudar o "nós" majestoso por um "nós" colectivo e fazer crer ao povo que é o seu próprio poder que a integração europeia põe em causa! E isso geralmente funciona bem: olhemos actualmente o número de cidadãos que se indignam com razão com a ausência de debate democrático sobre os mecanismos financeiros postos em acção ao nível da Eurolândia para gerir a crise e que protestam veementemente contra a Europa por trás dos líderes eurocépticos do seu país ... quando não têm nenhuma ideia de como funcionam estes mesmos mecanismos no seu próprio país. Tomemos o exemplo da França onde aqueles que denunciam a dominação dos bancos privados sobre o processo de endividamento dos Estados desde o Tratado de Maastricht ignoram que este já era o caso em França desde 1973!
(13) Fonte: Spiegel, 31/10/2011
(14) Uma "City" que David Camenor descreve como assediada pela Eurolândia. A propósito, esta declaração do primeiro-ministro britânico confirma que há, pois, uma guerra entre a City e o euro ao contrário do que dizem os media anglo-saxónicos. Fonte: Telegraph, 28/10/2011
(15) Fonte: Telegraph, 28/10/2011
(16) Fonte: Guardian, 23/10/2011
(17) Segundo o LEAP/E2020, o fracasso programado do "Sonderweg" britânico obrigará daqui até 2020 a Inglaterra a seguir os caminhos da Escócia e do País de Gales, os quais recusaram-se a seguir este "caminho que não leva a parte nenhuma" ... nem mesmo à América! Igualmente, mesmo num media eurocéptico como o Telegraph, onde a qualidade das análises chega a contrabalançar bastante frequentemente a ideologia, é obrigado a constatar que em caso de fracasso da Eurolândia o Reino Unido será lançado numa crise ainda mais grave do que a que experimenta hoje. Fonte: Telegraph, 09/11/2011
(18) Esta histeria britânica diante da integração da Eurolândia (chamada do outro lado do Canal da Mancha de "a crise do euro") é ilustrada por fantasmas delirantes publicados na imprensa de grande público, misturando a nostalgia da vitória de 1945 com um sentimento de vulnerabilidade sem precedente da Grã-Bretnha. O eixo franco-alemão torna-se uma máquina de guerra anti-britânica. Neste género, o artigo publicado em 31/10/2011 no Daily Mail é um "must"! E mesmo o Telegraph não pode resistir pois em 22/10/2011 titula "novo império europeu".
(19) O antigo chefe do exército britânico considera mesmo abrir o debate sobre o potencial das futuras forças armadas escocesas na perspectiva do referendo sobre a independência previsto para daqui a dois ou três anos. Fonte: GoogleNews, 18/10/2011
(20) E com um desemprego maciço e uma juventude abandonada a si própria sem educação, trabalho nem perspectiva de futuro. Fontes: Guardian, 14/11/2011; Telegraph, 14/11/2011
(21) Fonte: Telegraph, 01/11/2011
(22) Que continua igualmente a declinar com rapidez na listagem das economias mais importantes do planeta. O Brasil está prestes a ultrapassar o Reino Unido este ano. Ao agravar-se a crise financeira, o declínio da City vai reduzir fortemente o porte da economia britânica que depende fortemente deste centro financeiro mundial. Fonte: Telegraph, 31/10/2011
(23) Fonte: Guardian, 12/11/2011
(24) Pour mémoire: o endividamento público da Itália é igual a apenas 120% do seu PIB. Fonte: Ahram, 12/11/2011
(25) Fonte: New York Times, 08/11/2011
(26) Fonte: Newsdaily, 03/11/2011
(27) À parte a ausência da China de um tal projecto, o anúncio fundamenta-se numa declaração de intenção sem nenhuma base pormenorizada, remetendo os aspectos concretos para mais tarde. Mas não passa de uma "promessa": daqui a um ano haverá esta união aduaneira. Os cenários dos filmes de Hollywood são muitas vezes pouco realistas, mas aqui atinge-se o conto de fadas!
(28) Fonte: Guardian, 12/11/2011
(29) Même les voix les plus modérées, comme Jean-Pierre Jouyet, président de l'Autorité française des Marchés Financiers, reconnaissent désormais qu'il y a bien la guerre entre le Dollar et l'Euro. Source : JDD, 12/11/2011
(30) Isto terá como consequência, por ordem de importância crescente, reduzir ainda mais as perspectivas eleitorais para Nicolas Sarkozy, acelerar a integração financeira e fiscal da Eurolândia e fazer avançar a ideia de um grande empréstimo público eurolandês para o desligamento, de um vez por todas, dos mercados financeiro anglo-saxónicos. Esta última opção será, segundo a nossa equipe, posta em prática daqui até o primeiro semestre de 2012. Pormenorizaremos a sua natureza num próximo número do GEAB.
(31) A sua saída do sistema de desemprego dá a impressão de um embelezamento nesta frente. Não retornaremos à "fiabilidade" das estatísticas estado-unidenses do desemprego uma vez que já o fizemos amplamente em vários números do GEAB. Dois factos impõem-se: no ano passado na mesma época 75% dos desempregados eram indemnizados contra apenas 48% hoje; e mais de 26 milhões de americanos entram doravante na categoria das pessoas sub-empregadas (um recorde histórico). Fontes: CNBC, 05/11/2011; Business Insider, 20/10/2011
(32) Estes fenómenos são sempre súbitos pois essencialmente psicológicos.
(33) Salvo em França onde Nicolas Sarkozy, com o seu primeiro-ministro François Fillon, continua a degradar as finanças públicass, multiplicando meias medidas sem eficácia a longo prazo na esperança de servir a sua reeleição. Há muito de Berlusconi neste homem! A Comissão Europeia puxou a campainha de alarme a este respeito.
(34) É três vezes a totalidade das dívidas públicas da Grécia antes do desconto! Fonte: ZeroHedge, 01/11/2011
(35) Fonte: New American, 05/08/2011
(36) Um outro ponto comum entre Barack Obama e Nicolas Sarkozy, estes dois representantes do mundo anterior à crise: sua intimidade com o sector financeiro. Fontes: Le Monde, 22/10/2011 ; Minyanville, 04/11/2011
(37) E esta falência mostra que na Wall Street tudo continua a passar-se como antes de 2008, apesar das medidas ditas de controle do sector financeiro adoptadas pelas autoridades dos EUA. Este caso vai ter um impacto político profundo no contexto eleitoral de 2012 nos Estados Unidos. Fontes: CNBC, 01/11/2011, USAToday, 18/10/2011
(38) Fonte: FINS, 11/11/2011
(39) Por exemplo, o ABP, o mais importante fundo de pensão dos Países Baixos, vai ter de reduzir suas transferências aos aposentados devido a perdas destes últimos meses. Isto é uma consequência muito concreta do desaparecimento dos "activos-fantasmas".
(40) Constata-se igualmente uma inquietação crescente junto aos investidores das sociedades financeiras de Nova York e Londres. Fonte: Huffington Post , 12/11/2011
[NR] Resistir.info não tem necessariamente de partilhar as opiniões expressas nos artigos que publica. No caso em apreço, considera altamente duvidoso que o novo governo grego possa cometer tais feitos. Trata-se de: 1) um governo interino; 2) presidido por um banqueiro; 3) concebido para extorquir a ferro e fogo aquilo que lhe exigem os bancos credores alemães e franceses; 4) o seu programa é aplicar estritamente os acordos da troika; 5) a apregoada "unidade nacional" é uma frente negra de partidos reaccionários estabelecidos contra o povo grego.
[*] Global Europe Anticipation Bulletin
O original encontra-se em www.leap2020.eu/...
Este comunicado encontra-se em http://resistir.info/ .

quarta-feira, 12 de outubro de 2011


AS RELIGIÕES SURGIRAM POUCO ELABORADAS

As religiões surgiram pouco elaboradas, tendo evoluído no caminho da racionalidade


Por- António Bica

1. A capacidade humana de raciocínio abstracto
A capacidade do homem de inter-relacionar factos presentes e factos passados com factos hipotisados e estes entre si, que é capacidade de raciocínio abstracto, permite-lhe debruçar-se sobre ele mesmo e o Universo. Essa capacidade leva o homem à necessidade de explicar o meio em que se integra e onde se desenvolvem as suas actividades: procura e produção de alimentos, de abrigo, de meios de defesa, de prazer. Interpreta assim o meio em que se insere e os fenómenos que nele ocorrem em função da necessidade de evitar o perigo que esses fenómenos possam ter para ele, como uma trovoada, uma cheia, uma seca, um tremor de terra, um vulcão, um vendaval, e de utilizar o que puderem ter de favorável.
Para a compreensão destes fenómenos o homem recorre à sua memória e à capacidade de hipotisar (supor) factos na base da sua experiência.
A complexa actividade que o homem sempre foi obrigado a desenvolver, procurando incessantemente alimentos, trabalhando para os obter, defendendo-se dos outros homens, dos animais e dos fenómenos naturais para ele perigosos, constitui o fundo da sua experiência, a sua memória individual e colectiva. O homem é sobretudo um laborador, actuador com o seu corpo, em especial as mãos, sobre o meio em que vive para o utilizar em seu proveito, ao serviço da sua vida, humanizando-o.
Porque os fenómenos que ocorrem no meio de que faz parte interferem necessariamente na sua vida, o homem procurou sempre agir em relação a eles para evitar que aconteçam, se desfavoráveis, ou para suscitar o seu acontecimento, se benéficos, afastar as suas consequências desfavoráveis e fazer surgir as favoráveis.

2. O homem procura agir sobre a natureza por meios que ultrapassam as suas forças
Quando a acção sobre a natureza ultrapassa a capacidade do homem, procura consegui-lo por práticas rituais, o que corresponde a atitude mágica, que predominou nos colectivos humanos por muitos milénios e ainda frequentemente aflora. Tal como a percussão de duas pedras ou a fricção de dois paus faz surgir o fogo, admitia que outras acções pudessem fazer acontecer factos favoráveis ou desfavoráveis como provocar chuva ou afastar doença. Desse modo o homem visava tornar-se dominador do meio, procurando provocar ou evitar fenómenos naturais cuja ocorrência considerava para si benéficos ou nocivos. A convicção de que certos actos rituais seus levavam a que acontecessem determinados factos pretendidos reforçava-se com os ciclos dos fenómenos naturais: Se chamasse a chuva, ela surgiria decorrido tempo mais ou menos largo. Se procurasse afastar uma doença, ela acabaria por deixar o indivíduo ou o colectivo. Mesmo que o fenómeno desejado não ocorresse, ou não evitasse o acontecimento de fenómeno indesejado, era sempre possível atribuir isso à incorrecta prática do acto destinado a provocar ou a afastar o fenómeno, isto é a deficiente execução da prática mágica.
Nos povos agricultores continuou a prática da magia, porque se manteve a necessidade de chamar a chuva, expulsar a doença, quebrar o ânimo dos inimigos, dissipar as tempestades.
O conhecimento empírico dos fenómenos biológicos, astronómicos, climáticos e outros que condicionam a actividade dos colectivos humanos e a vida dos indivíduos levou progressivamente à personalização desses fenómenos. O sol, a chuva, a tempestade, a lua, os planetas, as constelações, os montes, os rios, as nascentes, as florestas, a noite, o céu, a terra, o fogo, os vulcões, o mar, os lagos, foram personalizados em espíritos ou em deuses. Cada uma dessas personalizações passou a ser destinatária de preces, sacrifícios, ofertas e outras práticas destinadas a torná-la benfazeja ou a aplacar a sua ira.
Foram criadas relações complexas entre estas personalizações e delas com os homens, que representavam, em regra, sob a forma de explicação do universo, os valores históricos do colectivo. É o que se designa por mitos, explicação de carácter emocional, isto é não racional.

3. A pulsão humana de fuga à morte
A morte repugna naturalmente a cada indivíduo. A vida é organização com manutenção dessa organização, a morte a desagregação. A organização só pode manter-se opondo-se à desagregação. Por isso a morte (desagregação do indivíduo) repugna à vida. A oposição à morte por cada indivíduo levou ao aparecimento de explicação mítica da vida concebendo a morte como acidente, que, sendo embora de decisiva importância na vida do indivíduo, não o extingue.
Cada indivíduo é, por essa explicação, ou mito, desdobrado em duas realidades: uma visível e perecível e outra invisível e imperecível.
Na sequência dessa explicação surgiu a assimilação da vida do indivíduo aos ciclos resultantes dos movimentos de translação real ou aparente da lua, do sol, das estrelas e dos outros planetas. A verificação desses ciclos e da sucessão das estações do ano, da queda das folhas no outono, da floração na primavera, levou à formulação do mito do eterno retorno: a realidade imperecível de cada ser humano, ou mesmo, na concepção indú, de cada animal, renascer, depois da morte da realidade visível e perecível, num novo corpo, à semelhança da permanente renovação da natureza.
Outra explicação concebia e concebe a morte do homem como definitiva para a realidade visível, sem renascimento ou reencarnação, mas com sobrevivência da realidade invisível.

4. A estruturação das religiões
Assim se foram construindo explicações para o universo em que o homem (indivíduo e colectivo) vive e de que ele mesmo é componente fundamental. Essas explicações evoluíram com o crescimento dos colectivos humanos, o desenvolvimento das forças produtivas e a sequente reestruturação social, procurando dar coesão a cada colectivo e justificar, dentro dele, as relações económicas e os elos sociais entre os indivíduos e os grupos sociais.
A construção, ou mito, da dupla realidade humana como forma de responder à recusa individual da morte contribuiu para reforçar as sanções sociais contra os desrespeitadores das regras e fórmulas tendentes a garantir a conformação do indivíduo com as normas do colectivo. Aos respeitadores das leis, fórmulas e ritos foi e é prometida, ou a felicidade eterna, nos casos de não reincarnação, ou o progresso no caminho para a felicidade eterna ou ainda a libertação definitiva do sofrimento nos casos de renascimento.
Essas construções, com os seus espíritos, deuses, mitos, cosmogonias, aparelhos sacerdotais, templos e ritos, são as religiões.

5. A organização tribal dos colectivos humanos
Os povos, ao fixarem-se na terra, tornando-se agricultores, mantiveram a estrutura tribal, cada tribo considerando os seus membros iguais entre si e os únicos com a dignidade de homens livres. Todos os outros indivíduos, não pertencentes à tribo, eram considerados gente exterior, sem integral dignidade humana (bárbaros para os gregos, filisteus e posteriormente gentios para os judeus), destinada a ser conquistada e escravizada. Os seus deuses eram, ou falsos deuses, ou deuses inimigos.
Assim cada tribo ou família de tribos (como as egípcias, as sumérias, as hebraicas, as gregas, as persas, as latinas) tinha a sua religião organizada na base dos valores tribais e consequentemente não apta a poder ser seguida ou adoptada por outras tribos.

6. O comércio a distância levou à criação de estados
O desenvolvimento da produção criou condições para o alargamento do poder político da tribo ou do grupo de tribos para além do seu inicial espaço geográfico. Organizaram-se correntes comerciais regulares na base de transporte a dorso de animais, por rios e marítimo. Esse comércio possibilitou significativa acumulação de riqueza, porque, ligando grupos humanos com grande desigualdade de desenvolvimento quanto às técnicas de produção, tornava possível trocar produtos manufacturados, cuja produção no lugar de origem exigia certo tempo de trabalho, por outros cuja produção exigia muito mais tempo. Uma peça de tecido colorido, ou um recipiente de vidro ou barro, ou uma estatueta poderiam ser trocados por bom peso de ouro, de prata, ou de cobre, de trigo ou cevada, por bom número bois ou cavalos, ou por escravos. Pelo Mediterrâneo o comércio marítimo foi desenvolvido sobretudo pelos Fenícios e depois pelos Gregos. Portugal, no século 15, ainda o praticou pelo oceano com povos de economia menos desenvolvida na África ao sul do Sahara.
A acumulação de riqueza que, sobretudo na antiguidade, o comércio internacional possibilitou interessou as unidades políticas mais ricas na defesa das rotas de comércio ou estimulou-as à guerra de rapina para se apropriarem da riqueza dos outros povos. Essa tendência para o alargamento da área de influência económica fez criar conflitos entre as múltiplas unidades políticas existentes e levou a que umas impusessem pela força o seu domínio a outras. Deste modo se criaram unidades políticas alargadas, os estados, compostas por vários povos.

7. A desadequação das religiões tribais aos estados
O progressivo alargamento destas unidades políticas cada vez mais vastas, que no Médio Oriente tiveram centro no Egipto, na Assíria, na Babilónia, na Pérsia, na Macedónia e noutros pontos, foi sendo feito sem que tivesse surgido sistema religioso suficientemente englobante para se tornar religião de unidade política composta de diversos povos. As religiões de raiz tribal resistiam e, porque cada uma delas era exclusivista tendendo a negar o mundo exterior à sua tribo de origem, nenhuma teve capacidade para se impor como religião dos povos englobados na mesma unidade política.

8. Também ao império romano faltava unidade religiosa
À unificação política, económica, linguística e jurídica feita posteriormente pelo império romano também não correspondeu unificação religiosa. As religiões dos diversos povos que o constituíram eram de origem tribal e consequentemente qualquer delas incapaz de ser elevada a religião do império, porque cada uma tendia a negar aos povos diversos daquele que a criou o reconhecimento da igualdade. Há que creditar ao império romano ter generalizado o uso do latim e do grego sem impor a eliminação das línguas dos diversos povos (que desapareceram muito tempo depois), mas tendo imposto, através do direito, comportamentos básicos de respeito pela vida humana e de cumprimento dos contratos, sem forçar o desaparecimento dos valores próprios de cada povo.
Embora o império romano não tenha conseguido criar sistema religioso capaz de unificar os povos que o integravam, fez débil tentativa com a deificação dos imperadores reinantes, que não teve força para se impor à convicção das populações, quer por a classe dominante ser suficientemente culta e racionalista para aceitar convictamente o culto do imperador, quer porque a divinização de homens vivos não era admitida pela generalidade das religiões seguidas pelos povos do império.
Na impossibilidade de o culto do imperador reinante unificar religiosamente o império, foi fomentada a interpenetração religiosa, favorecida pela deslocação dentro do império dos seguidores das diversas religiões: soldados, comerciantes e administradores. Em Roma foram admitidos os cultos dos diversos povos, o que foi institucionalizado e simbolizado no tempo do imperador Augusto com a construção em Roma do Panteon (templo de todos os deuses) reconstruído depois, sob a forma que hoje tem, pelo imperador Adriano. E por outro lado expandiram-se, ao lado dos cultos locais, o culto das divindades egípcias e outras do Médio Oriente.
As religiões mais evoluídas do Médio Oriente foram as que mostraram maior vigor e capacidade expansiva no império romano por serem mais universalizantes. O culto de Ísis era conhecido por toda a parte. O culto de Mitra parece ter tido expansão ainda maior.
Não era todavia possível a unificação religiosa sem religião suficientemente elaborada para poder ser aceite pelas classes dominantes romanas de cuja preparação escolar fazia parte o estudo dos filósofos gregos e romanos. Essa religião teria que ter características que a compatibilizassem com o racionalismo da filosofia greco-romana.

9. A adopção pelas tribos hebraicas de religião monoteísta
O povo hebraico de origem semita, mais tarde integrado no império romano, teve profundo contacto com o povo egípcio. Por razões complexas, em cuja base parece ter estado forte influência das religiões egípcias, nomeadamente o monoteísmo imposto pela reforma religiosa do faraó Aquenaton cerca do ano 1300 antes de Cristo na sequência do antigo culto do sol considerado pelos egípcios o grande deus, os hebreus criaram sistema religioso baseado no monoteísmo de Aquenaton a que adicionaram importantes elementos da cosmogonia semita mesopotâmica (por exemplo o dilúvio).
O povo hebraico, após a saída do Egipto pelo fim da centúria de 1300 antes de Cristo e a posterior fixação na Palestina, sofreu acidentes políticos diversos e as diferentes tribos foram perdendo consciência da sua individualidade. Só a tribo judaica sobreviveu aos impérios assírio e babilónio. Mais tarde, cerca do século 6 antes de Cristo, com o regresso das classes dominantes judaicas do exílio na Babilónia, se reorganizou politicamente em torno de Jerusalém, durante o império persa, e se manteve sob os impérios grego e romano até Tito e Adriano.
A religião hebraica, mantida desde então pela tribo de Judá, caracteriza-se, como todas as religiões de origem tribal, por ser válida só no interior da tribo, ou grupo de tribos com a mesma origem. O seu deus único é concebido como o dos judeus. Só pelos judeus é adorado e só a eles reconhece. É o seu protector e implacável vingador contra os outros povos. E promete, como deus tribal, conduzi-los à vitória sobre os outros e ao domínio sobre eles.
As religiões tribais eram em regra politeístas, isto é admitiam a existência de vários deuses. Embora os deuses da tribo só existissem dentro dela, não excluíam os das outras. Mas o sistema religioso hebraico assenta na concepção de um único deus, criador do mundo e dos homens. Todos os outros seus primitivos deuses foram degradados à categoria de anjos (antigos deuses bons) e de diabos (antigos deuses maus). Não existe pois nenhum outro deus no Universo. Ele é o deus único, sendo-o apenas dos hebreus. Todos os outros povos estão, na concepção hebraica, privados de deus verdadeiro. E o deus único promete ao seu povo, os judeus, vir a dominar todos os outros. Esta é a contradição estrutural da religião judaica, que impede e sempre impediu o seu alargamento aos não judeus.

10. A reforma cristã da religião judaica
A religião judaica estava então, durante o domínio político helenista e depois o romano, sujeita à inevitável fermentação por cruzamento de influências que deu origem ao aparecimento de correntes religiosas, de seitas, de comunidades, de profetas e reformadores. A integração de Judá no império grego e depois no romano impossibilitou à classe dominante judaica reprimir no seu território, a Palestina, as novas correntes religiosas por lhe faltar autonomia política.
Assim em Judá, poucas centenas de anos antes de Cristo, nasceram diversas correntes religiosas à volta do velho núcleo monoteísta hebraico. Entre as múltiplas correntes (fariseus, saduceus, essénios, etc.) surgiram os cristãos organizados com base na reforma elaborada pelo profeta Jesus, que os seus seguidores identificaram com o Cristo, isto é com o grande rei que havia de conduzir os hebreus à vitória sobre os povos da terra, cumprindo assim as promessas do deus único hebraico.
A doutrina de Jesus assentava na existência de um deus único criador de todo o Universo tal como entendia a ortodoxia judaica. Mas introduziu-lhe valores novos que lhe fizeram perder o carácter tribal da religião judaica e deram potencialidade para se alargar a todos os povos. Esses valores novos foram: o reconhecimento de que todos os homens são iguais por todos serem filhos de deus único; o deus único ser deus de amor, compassivo e perdoador, isto é não vingativo e não ciumento como o Antigo Testamento figura deus.
Estes novos valores, introduzidos na velha religião hebraica tribal monoteísta, deram potencialidade ao cristianismo para se tornar religião universal e portanto religião do império romano, trazendo-lhe o cimento religioso que nenhum dos impérios anteriores conseguira.
Esta religião, que assentava na existência de um único deus de quem todos os homens são filhos e consequentemente iguais entre si, era suficientemente evoluída, racional e depurada para poder ser adoptada pelas classes dominantes do império romano. Para isso os dirigentes religiosos cristãos de cultura greco-romana tiveram o cuidado de vestir a nova religião judaica reformada com a roupagem da filosofia das correntes idealistas de raiz socrática, tarefa em que sobressaiu Paulo de Tarso da etnia judaica e cidadania romana.

11. A adopção pelo império romano da religião cristã
A nova religião teve capacidade para se impor às classes trabalhadoras urbanas pelos valores de tolerância que adoptou das correntes filosóficas greco-romanas e do direito romano e por estas classes terem quebrado a sua ligação às estruturas económicas tribais. Os rurais do império romano, designados por pagãos por viverem nos “pagos” (aldeias), mantiveram por longo tempo, que as populações rurais são sempre as mais conservadoras, as velhas religiões só eliminadas por repressão, que se prolongou na Europa pela Idade Média e mesmo a Idade Moderna, contra a sobrevivência dos velhos cultos (práticas mágicas, fogueiras solsticiais, festas de Maio, refeições de culto aos mortos, orvalhadas do solstício de verão) por vezes disfarçados sob formas cristãs. Em Braga, no século 6, S. Martinho de Dume escreveu o livro “Sobre a correcção dos Rústicos” com o intuito de combater a sobrevivência das práticas pagãs.
O cristianismo submergiu a partir do século 4, com o reconhecimento pelo imperador Constantino, as restantes religiões do império romano e expandiu-se para além das fronteiras dele. Só foi arredado seiscentos anos mais tarde na parte sul e sudeste do império romano pelo Islão, que é religião monoteísta judaico-cristã depurada das complexidades teológicas do cristianismo.

12. O monoteísmo sob forma cristã e islâmica expandiu-se no mundo
Com a expansão política e económica da Europa cristã, a partir do século 15, e do Norte de África e Médio Oriente islâmicos, desde o século 7, as religiões monoteístas, o cristianismo e o islamismo, alargaram-se à África, à Indonésia, ao centro e ao norte da Ásia, às Américas e à Austrália.
Hoje o monoteísmo, sob forma cristã ou islâmica, tornou-se a concepção religiosa demograficamente dominante. Têm-lhe todavia oferecido forte resistência o induísmo (politeísta) dominante na Índia e o budismo partilhado pelo Sudoeste da Ásia, o Oriente Asiático e o norte da Índia, onde convive pacificamente com o remanescente de antigas religiões. O budismo, sendo mais filosofia do que religião, convive bem com outras filosofias (o confucionismo) e com antigas concepções religiosas nomeadamente na China e no Japão.

13. O ressurgir na Europa do racionalismo da filosofia greco-romana
A racionalidade da filosofia greco-romana, que a teologia cristã adoptou para o cristianismo se ter podido expandir no império romano, reemergiu na Europa, por via do Renascimento, com o racionalismo nos séculos 17 e 18. Desse ressurgimento nasceram: a ciência, que é a observação cuidadosa dos fenómenos naturais, a sua repetição se possível (experimentação), e a procura de explicação racional deles; o sequente desenvolvimento tecnológico que deu origem à produção industrial de bens; e o progressivo alargamento a toda a população do conhecimento dos fenómenos naturais e das correspondentes tecnologias, por iniciativa do poder público, para a habilitar à produção industrial de bens.
O desenvolvimento da ciência e o sequente alargamento a toda a população do ensino levaram ao questionamento das religiões, desde o século 16, embora a interrogação sempre tenha estado presente na reflexão de alguns pensadores desde tempos anteriores.
O avanço no conhecimento da natureza levou a pôr em causa as religiões herdadas do passado. Uns, questionando-as, passaram a negar a concepção de deus único (sem aceitar a de múltiplos deuses). Outros a pô-la em causa, considerando não demonstrável a sua existência nem a inexistência.
Os que põem em causa a existência de deus, consideram que, observando o universo, se vêem corpos celestes girando entre si segundo leis constantes; que os compostos químicos cristalizam sempre sob certas formas; os elementos simples (hidrogénio, oxigénio, carbono e outros) se associam de modos sempre iguais se as condições forem as mesmas; os protões, os neutrões e os electrões sempre se organizam entre si segundo formas certas; os elementos mais simples, embora constituam realidades ainda mal compreendidas, parecem obedecerem ao mesmo tipo de constâncias; e cada ser vivo sempre age para manter a sua existência e reproduzir a espécie. Assim é, consideram, porque de outro modo deixam de ser o que são.
O que os faz assim agir, procurando a melhor organização para eles, parece ser princípio inteligente universal comum a tudo o que existe.
Se assim for, a inteligência humana corresponderá ao constante avanço organizativo de tudo o que existe, complexificando o princípio inteligente universal. Tudo o que existe, ao tornar-se progressivamente cada vez mais complexo, potenciará esse princípio inteligente universal até capacitar, pela inteligência abstracta, os humanos a debruçar-se sobre si mesmos e sobre o universo de que fazem parte.

14. A incapacidade humana para compreender completamente o universo
Outra questão é se os humanos alguma vez alcançarão o pleno conhecimento do universo, isto é de tudo o que existe. Não parece possível, que, sendo parte dele, isso estará fora do seu alcance. Compreender implica abarcar, o que os humanos parecem nunca poderão conseguir com o infinito universo de que são ínfima parte. À parte parece estar vedado compreender, abarcar o todo.
Poder-se-á considerar, com Espinosa e outros pensadores, que este entendimento da inteligência corresponde à aceitação de deus imanente, isto é de deus inteligência do universo, pois, sendo o universo a suprema complexidade, englobando a complexidade de todos os seres, incluindo os humanos, corresponder-lhe-á necessariamente a suprema inteligência, que tudo compreende, geradora da máxima auto-consciência, concepção monista que se contrapõe à de deus transcendente, independentemente do universo, dele criador e nele presente, que é a das religiões monoteístas.
Mas a ideia de deus imanente não parece aceitável, que isso implicaria o universo ser dotado de inteligência distinta da de cada ser e haver nele, como nos seres vivos, mormente nos humanos, órgão específico produtor de inteligência consciente e também mecanismos capazes de fazer chegar os seus comandos a cada parte da sua infinitude, que, pelo que se pode inferir do que se observa, não existem.
A ideia de deus transcendente, isto é pré-existente ao universo, dele criador e distinto, responde à necessidade humana, que resulta da capacidade de raciocínio abstracto, de explicar o mundo exterior e consequentemente o universo. Porque os humanos, sendo ínfima parte dele, são incapazes de o compreender, embora o vão entendendo cada vez mais, em vez de modestamente aceitar essa realidade, têm tentado explicá-lo figurando a existência de deus como dele criador apesar de aceitarem a sua incapacidade de explicar deus.
Os defensores da ideia de deus (transcendente ou imanente) usam o argumento utilitarista, como se o universo existisse por causa dos humanos, da necessidade de haver regras de conduta a eles ditadas por deus, embora através de certos privilegiados, os profetas, para assegurar a harmonia entre os homens. Além de não ser racional a ideia de deus privilegiar alguns homens, com a sua comunicação, mesmo que indirecta (deus não comunica directamente com os homens), entendendo-se o universo criado por deus, é ele necessariamente regido pelas melhores leis, bastando por isso aos humanos, para assegurar a harmonia entre eles e com toda a natureza, procurar progredir no conhecimento das leis naturais. Por outro lado, tendo deus necessariamente criado o universo com as melhores leis, isso exclui a possibilidade de milagres, entendidos como excepção às leis naturais, por intervenção pontual de deus, pois, sendo elas de criação divina, não podem deixar de ser as melhores, portanto insusceptíveis de correcção.
A capacidade humana de raciocínio abstracto, procurando para tudo explicação, é que será geradora da ideia de deus imanente ou transcendente como explicação para o universo. Mas o avanço dos humanos no conhecimento do universo, embora modestíssimo como é e seguramente sempre será, está a levá-los a progressivamente aceitar a sua natural incapacidade para completamente o compreender sem deixar de sempre querer progredir no caminho do seu conhecimento.

15. Não é lícito impor a alguém a adesão ou a não adesão a religião
A acção para converter outros à religião ou não religião (a que cada um de nós adere) para os convencer de que existe ou não existe deus ou de que a sua existência não é demonstrável é legítima, porque cada um deve ser livre de procurar convencer outro do que tem para si como verdade. O que não é legítimo e o poder público nas sociedades organizados deve combater é o exercício fazê-lo pela força, isto é por coacção física, moral ou social.
A verdade é conclusão pessoal a que cada um chega raciocinando e sentindo-a como verdadeira, que não há padrão para a verdade, sendo antes meta para que, sem nunca definitivamente a alcançar, se avança individual e colectivamente pelo caminho de processo mental pessoal necessariamente livre.
Impor a alguém por coacção física, moral ou social que aparente considerar «verdade» aquilo de que pessoalmente não está convencido é tão ilícito, em rigor criminoso, como sujeitar outro a violência contínua.

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